quarta-feira, julho 04, 2007

ARDER

Viver é como passar o dedo na chama de um isqueiro. Se você passa rápido não queima, mas se parar, arderá. Viver parada arde. O movimento de ida e volta que faço com meus dedos olhando para o isqueiro, enquanto ensaio acender um cigarro. É como o movimento que faço na vida enquanto acendo as luzes de quartos escuros. Circulo por entre lençóis perfeitamente estirados e outros amarrotados com uma mesinha e a luz em um canto quase apagada. Olho as suas costas e você nem nota o barulho dos meus passos pelo corredor até aquele foco de luz em um quarto vazio. Sinto o cheiro da sua solidão do outro lado da rua. Venho partilhar deste seu sofrimento mudo e necessário. Entendo suas necessidades. Porque as tenho vez ou outra. Diferente de você resolvi parar de arder. Coloco o óculos escuro para tentar esconder as olheiras. Prendo o cabelo deixando parte dele solto. E subo essas ruas e avenidas que circundam o seu círculo.
O cheiro da sua solidão me embebeda a cada novo segundo. Ando. Ando. Ando. E me pego mais uma vez parada na sua porta. Penso em fugir. Mas besteira é não aceitar o que se tem. E eu tenho o seu cheiro impregnado. Suas costas tatuadas na minha memória. O seu rosto não consigo enxergar por causa daquela falta de luz. Te aberto os ombros e você não se virá. Continua sentado, curvado e com olhos pregados em um papel. Você está sempre escrevendo. Porque não sai para viver ou virará-se para me olhar no olho. O que tem aí dentro que ninguém pode ver? Deixa de arder enquanto todo mundo está em movimento. Deixa.
Deixo de ensaiar acender o cigarro. Saio na companhia dele. Andando comigo mesma com um sorriso no canto da boca. A parte que me importa é essa que se movimenta. A que quer arder. Que arda. Mas dessa vez calarei sua voz. Prenderei suas mãos na cadeira deste quarto quase sem luz. Engolirei as chaves. Você terá que enfiar os dedos nas minha entranhas para recuperar a chave e a luz. Ou você ou alguém capaz de trazer a vontade de parar e arder.


assisti 'cão sem dono' e descobri que já posso assistir filme em que falam "cancêr" sem passar vergonha debulhada em lágrimas no cinema, não que tenha passado, mas já dá para assistir filme sobre, com o mínimo de dignidade.
sem mais.

baste
a quem baste
o que lhe basta
o bastante de lhe bastar
a vida é breve
a alma é vasta
ter é tardar
Fernando Pessoa

(lindamente musicado pelo seychelles) - lembrado em um belo comentário do brunolds lá oh:
http://www.susinaoandasozinha.blogspot.com/