quarta-feira, agosto 20, 2008

(RE)Viver

Uns entram, outros saem. Um ciclo de vida que eu aprendi a jogar no tabuleiro das perdas. Ninguém sabe meus reais motivos e eu não conto para ninguém. Reinvento um personagem, quase não falo de dor, enxugo lágrimas de finais de filme e sorrio porque saio daquelas salas, cheia de poesia. Vejo os carros muito maiores e coloridos, assisto a vida nas calçadas daquela rua com tanta história minha, nossa, deles que andaram por lá antes. Tudo misturado diante do baixo meretriz. Reencontro minha vida nas páginas de uma reportagem bem escrita. Tenho vontade de reescrever essa história inteira. Choro, sorrindo, enquanto procuro uma foto em especial que lembra ela. No meio de tanta coisa velha, tanta lembrança registrada, lembrei de uma carta que só lembro a existência, li uma vez, mas não prestei atenção, porque não queria saber mais dessa história que fui obrigada a registrar no meu cartório da vida ainda tão nova.

Eu só tinha quinze anos e tudo que fazia era me revoltar contra Deus, com minha família, com tudo que não explicava jamais porque ela e porque naquele momento. Tínhamos finalmente tudo pelo qual lutamos, duas casas próprias, dois lares. Mas veio a doença e eu lembro de me perguntar diante do espelho, no alto dos meus quinze anos, no fim da minha infância, "por que?". As respostas são inaudíveis e podem chegar quase quatro anos depois. Enquanto eu despertava para vida e dava meu primeiro beijo, ela dormia e segurava a minha mão com força. Ela que comprava revistas de colorir e me levava na padaria para comer tudo que minha mãe não deixava. Ela que saía atrás de um carneiro vermelho e amarelo porque eu cismei que queria tirar uma foto com ele, cismo desde pequena com as coisas, com a diferença de que agora não vou mais atrás dos carneiros.

Aquela vidente com fama de manicure falou que nunca mais fui a mesma desde que conheci o fim. Comecei a ser mais passional, procurar o meu certo e errado, escrever a minha própria narrativa enquanto me guio como a personagem principal. Hoje, falei com a minha amiga que não sabia como as pessoas simplesmente jogam sua vida nos braços dos outros, e apesar de não arriscar um "nunca farei", nisso sabia que jamais chegaria. Eu gosto da sua alma e me sinto protegida, mesmo que tudo seja tão ilusório e eu nunca saiba mesmo o que há, mas sua essência é feita de liberdade. A mesma que ela nunca soube viver, até morrer. A mesma na qual me largo.

Faço tudo caber nos meus próximos dias, para não achar que o infinito acaba, refaço a cada passo essa história. A mesma que a prometi contar em palavras, ajudando os outros, sendo jornalista. Eu prometi ao lado dela ali pálida e imóvel: "eu vou ser jornalista, eu vou ajudar as pessoas, eu vou", perdida em lágrimas esperava ela abrir os olhos. Acabou e ela não abriu. A fecharam e nunca mais.

A cada nova linha daquela reportagem, ou quando parava para recuperar o fôlego, notei que as lágrimas eram alivio e encontro. Aquela matéria traduz o que significa a profissão para mim: ajudar, mostrar, dar voz a quem - vida ou morte - trata de tirar. Não importa nada dessa luta enorme de egos desses escritores, eu não quero um copo mais cheio ou vazio diante dessas mesas, não importa se vou escrever sobre buracos de rua de uma cidade no fim do mundo, eu só sei que vou escrever enquanto houverem palavras. Até eu ter orgulho de mim e ela também.

A lembrança mais nítida que tenho dela, é um olhar de dor com um pedido de ajuda. Não podia fazer parar de doer, nem deveria ter saído correndo sem saber para onde, na tentativa de encontrar abrigo. Porque tudo que eu podia dar, eu dei: amor. Tia, eu vou te amar para sempre, descanse em paz, fim.

Hoje, comecei um novo capítulo nessa história sem fim. O tempo não apaga a falta, mas conforta com o acaso.