quarta-feira, junho 20, 2007

AO PÓ

O frio e o mundo fazem sentido. O mundo é uma coisa que nunca fez muito sentido para mim. Nunca encontrei alguém que colocasse em palavras tudo o que eu sinto. E eu preciso beber palavras tanto quanto preciso comer. Tanto quanto preciso respirar e viver. Invento um monte de vida. Vivo tudo que queria viver aqui neste teclado. Prego meus olhos nesta tela e estas letras na minha vida. Minha ficção vestida de realidade. E a realidade toda enganada pela maldade do mundo. Por estes malditos ladrões de coisas e de vida. Por pessoas agonizando em si enquanto se vestem com um sorriso. Por sonhos que fazem sentido no frio e no compasso da rede.
Meus medos desnudados numa escrita de coração e entranha. O começo e o decorrer da minha vida escritos a uns 70 anos. A minha morte parece estar anunciada a cada página que rasgo para comer. Engulo cada linha. Paro. Cubro meus braços desnudados pela blusinha rosa que me veste da farsa que os outros vêem. Encolho as pernas e quase posso tocar meu coração. Meus olhos cansados da culpa que me deram no dia de hoje e das lágrimas silenciosas e ridículas que derramei no ônibus. O mundo está me pregando peças. Estou no maior teste de fogo. Os problemas parecem desfilar e sorrir na minha frente para a foto que eu não sei tirar. As palavras cortantes da minha mãe. Cada uma como uma navalha. Ela afia a lâmina no meu coro e me arranca a carne. A frustração dela, aparentemente, não me atinge. Conservo as aparências para que ninguém entre aqui dentro tão fundo que não consiga jamais expulsar. Tenho problemas. Milhares deles. Em fila indiana. Mas não vou ficar pelos cantos como a pobre coitada. Não sou coitada de mim. Invento meu personagem nestas palavras que por um momento parecem tirar uma porção de coisas ruins. No momento seguinte encaro os fatos. Sinto frio. Fome de vida. Vontade de gritar na multidão. Queria fechar a conta. E mandar o recibo para eles todos que me enlouquecem. Meus malditos, sagrados e profanos. Pergunto ao pó e espero ir encontrando as respostas. Ou não.
O pó me dá alergia. Espirro minha vida a cada nova página de verdades cuspidas em fila. Quero meus problemas resolvidos por decreto. Me convenço que a culpa não é minha. A culpa não pode ser minha. Não desta vez. Assim como de quase nenhuma que ela destila em veneno. A cada segundo morro um pouco mais no veneno de quem me pôs no mundo. Preciso ser de verdade. Conseguir um emprego e me mandar. Antes que ela me mande para dentro de mim e eu me perca. Não consigo me achar com facilidade, estou me perdendo nesta redoma de vidro, embaçando as paredes com minhas lágrimas silenciosas. Cada segundo uma coisa nova. Mais um corte. O sangue está jorrando do meu cérebro. Lavando o chão de palavras, matando meu sonho. Preciso ser de verdade para terminar de vez com estes cortes. Mesmo que ser de verdade seja colocar meu sonho para dormir e me prender em um emprego de merda. Minhas lágrimas lavam meus pensamentos e me mostram que não há outro caminho. Emprego. Qualquer. Até o de merda. Preciso de um e pronto.
Enquanto isto, me perco, no pó. Pergunto a ele. Pergunto a John Fante e Arturo Bandini. Sinto que alguma coisa vai acontecer. Sinto isto e ainda estou na página trinta. O trabalho para conseguir o livro e a certeza de que este é o momento. Não sei de que. Mas é o momento.


"Eu tinha vinte anos, na época. Que diabo, eu me dizia, você tem tempo, Bandini. Você tem dez anos para escrever um livro, vai com calma, sai por aí e aprenda a vida, ande pelas ruas. Esse é o teu problema: ignorância de vida."
john fante